Por MALU FONTES*
Marina Silva, a candidata do Partido Verde à Presidência da República, derrotada no primeiro turno das eleições no último domingo, conseguiu o que queria. Como ela mesma disse, ‘perdeu ganhando’. Saiu das urnas com 20 milhões de votos e impediu o que ela chamava de consulta plebiscitária nas urnas, entre Dilma Roussef, a candidata do Governo, e José Serra, o candidato da oposição. Os votos de Marina, mesmo que tucanos ingratos de alta plumagem, como o senador Álvaro Dias, neguem peremptoriamente essa tese, determinaram, sim, a existência do segundo turno. Os eleitores de Marina são os órfãos ideológicos de um PT de tempos puristas e os famintos de ideologias. Votando nela, parte desse eleitorado acreditava piamente estar submetendo a campanha eleitoral a uma lavanderia ética obrigatória. Num outro extremo de perfil, a chapa de Marina serviu de abrigo para os votos dos eleitores religiosos mais dados ao radicalismo, desconfiados de Dilma e Serra quanto ao apoio futuro a uma eventual legislação de descriminalização do aborto.
No frigir dos ovos e por caminhos transversos, a turma da lavanderia ética levou a campanha mesmo, pelo que se viu até aqui, não para uma disputa eleitoral, mas para um plebiscito em torno do aborto e para uma olimpíada de mensuração do índice de religiosidade. O plebiscito do aborto não era uma das teses de Marina? Pois, de novo, conseguiu o que queria. O século catorze vai longe no tempo, mas nas idéias, nem tanto. Religiosa e explicitamente contra a legalização do aborto, Marina, sempre que questionada sobre o assunto, ensaboadamente dizia que era a favor de um plebiscito, postura típica de quem não quer sujar as mãos e se queimar com o eleitorado moderninho e semi-politizado. Todo mundo que é contra mudanças na legislação do aborto e não quer ficar mal na fita com a galera, propõe um plebiscito, justamente por estar certo de que tal estratégia teria um efeito absolutamente favorável a quem não quer mudança nenhuma.
COM DEUS - Plebiscito sabidamente não é instrumento para definir rumos que um país deve dar, além da cadeia, a um de seus grandes problemas de saúde pública. O problema é que os contrários à mudança acham que este é um tema de Deus, das religiões, e não da saúde e ou do direito individual das mulheres escolherem se querem ou não ter um filho em determinado contexto e momento. O que as religiões têm a ver com os códigos de lei de um país? Os cardeais e seus rebanhos acham que têm tudo. O Estado brasileiro não é laico? Sim, mas só meia dúzia de pessoas sabe o que é isso, enquanto milhões acreditam mesmo é nos dogmas de suas igrejas. Só desmiolados ou gente feita de pura inocência, como a senhorinha Roriz, por exemplo, não sabe que 11 entre cada dez famílias religiosas, que um dia já se livraram de um neto ou sobrinho indesejado, votarão mil vezes contra a descriminalização do procedimento em um plebiscito. A demonização da legalização do aborto não é tema de campanha eleitoral, mas de salão de igreja e de hipocrisia social. E não vale a tese batida pelos fãs de Nosso Lar de que o aborto, se descriminalizado, será transformado num mecanismo banal de contracepção, usado como uma camisinha. Mais canalha ainda é a tese de que haverá uma carnificina de fetos. Aponte-se, então, um país do mundo onde a legislação apartou-se de vez da fé e da religião, descriminalizou o aborto e houve aumento nos índices do procedimento. Em nenhum aconteceu isso.
Na primeira semana após as eleições, ao invés de grandes comemorações ou manifestações de decepção por conta da candidatura que cogitava fortemente a possibilidade de vencer o processo no primeiro turno, o que veio à tona, em tons nada explícitos e embalado em subterfúgios e até enviesado em discursos que têm Deus à frente, foi o aborto. Num tom talvez inspirado em algum saudosismo ancorado em tempos medievais, o que prevaleceu nos microfones e nas manchetes foi uma palavra de ordem na linha “com Deus e pela vida”. A presença do aborto na campanha, nas primeiras horas após o resultado do primeiro turno, não se deu nem em formas nem em termos claros. Quando apareceu na TV após o primeiro turno, mais gordinha e em seus terninhos muito distantes do desejo daqueles que esperam que Alexandre Herchcovitch desse um jeito em seu figurino, Dilma Roussef olhou para as câmeras e, numa postura serena e terna, afirmou em tom solene que ela é a favor da vida e vem de uma família extremamente católica. Dava assim o seu recado aos fundamentalistas da fé que já acreditaram que comunista come criança. Pela vida significa, nesta campanha, ser contra mudanças na legislação sobre o aborto.
ÚTERO - O tom medieval pode esconder-se em tabu na fala de Dilma e escancarar-se nas palavras de Serra, mas apareceu em todo o seu esplendor de pavão na primeira entrevista dada à TV por Luiz Bassuma, candidato derrotado do Partido Verde ao governo da Bahia. O deputado, ex-petista, disse apoiar Serra porque não vai apoiar uma candidata que defende “a legalização da matança de criancinhas”. Nestes termos literais. Roteiro de filme trash de terror tem frases de efeito menos trevoso.
Nesses primeiros dias pós primeiro turno, tem-se a impressão de que aquilo que está em debate não é um projeto A ou B para o país. O que se discutiu até agora foi se Serra é mais ou menos cristão que Dilma e vice-versa; se o eleitor deve seguir, para votar, a orientação religiosa dada por Silas Malafaia, por Edir Macedo ou pelos cardeais da Igreja Católica. A prevalecer a lógica discursiva adotada nesses primeiros dias de campanha do segundo turno, os oito milhões e meio de quilômetros quadrados da extensão territorial brasileira e a montanha de problemas cruciais enfrentados por mais de 190 milhões de brasileiros serão reduzidos a um território ínfimo do corpo das mulheres brasileiras em idade reprodutiva: o útero.
*Malu Fontes é jornalista, doutora em Comunicação e Cultura e professora da Facom-UFBA. Texto publicado em 10 de Outubro de 2010 no jornal A Tarde, Salvador/BA. maluzes@gmail.com
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