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quarta-feira, 6 de outubro de 2010

A Face Negra da Deusa

A conheci na enfermaria da maternidade. Eu tinha acabado de parir meu filho e, desamparada pela solidão do quarto particular, dedicava as manhãs a perambular pela enfermaria. Era aconchegante estar reunida com aquele bando de mulheres que não entendia como eu podia querer estar ali junto a elas. E foi assim que a conheci. Uma mulata que já não ostentava o frescor dos seus poucos anos de vida. Ficava deitada numa cama,sem nenhuma assistência dos médicos e enfermeiras. Os médicos passavam por ela como se ela fosse um fantasma incômodo, uma mancha que o clorofórmio não limpava. Fedia muito. Um cheiro de maresia e carne podre. Não aguentava se levantar e ir ao banheiro. Os olhos vidrados miravam um ponto que só ela enxergava…
As mulheres da enfermaria, as mães, eram as únicas que a assistiam. Limpavam o seu corpo e dividiam com ela as suas parcas provisões (as enfermeiras quase não lhe davam comida). Eu, fechada na burrice burguesa e alienada da “vida real”, não entendia a razão da sua presença. Afinal, aquela era uma enfermaria para parturientes e ela não parira ninguém. Mas o que mais me intrigava era que as mães a reverenciavam como se ela tivesse parido Jesus!
Os dias se passaram e numa manhã o seu leito ficou vazio. Morrera à noite, cercada pelas mulheres que tão bem a conheciam. Não teve assistência dos médicos e nenhuma enfermeira foi lhe ver. Morrera com o rebento morto no ventre. Um rebento perfurado por uma agulha de tricô. Um aborto que não dera certo.
Foi enterrada como indigente e deixou para as ruas os seus quatro filhos, quatro crianças que ela criava às duras penas. No dia da sua morte as mulheres não sorriram nem embalaram os seus rebentos. Vestiram negro e se esconderam na sabedoria, como a lua se esconde no céu nos dias da Lua Negra! 

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