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Título original: When We Have Never Been Human, What Is to Be Done? Interview with Donna Haraway Autor: Nicholas Gane Tradução: Ana Letícia de Fiori NG: O “Manifesto Ciborgue” foi publicado originalmente na Socialist Review em 1985, há 25 anos. Quais eram seus objetivos e motivações ao escrever esse ensaio? DH: Havia dois tipos de documentos de posição pública que fui solicitada a produzir no contexto do feminismo socialista e, de modo mais amplo, dos novos movimentos de esquerda nos Estados Unidos nos anos 1980. Do ponto de vista dos Estados Unidos, logo após a eleição de Reagan, o coletivo da Socialist Review na costa oeste pediu a mim e a várias outras pessoas – Barbara Ehrenreich e outras – para escrever cinco páginas discutindo as posições feministas socialistas e questionando as mudanças políticas urgentes que deveríamos promover. Questionamo-nos que futuro poderia haver para nossos movimentos no contexto na eleição de Reagan e, é claro, o que aquela eleição representava em termos de questões culturais e políticas mais amplas, não apenas nos Estados Unidos, mas em escala mundial. Thatcher, na Inglaterra, simbolizou isso um pouco, mas era algo maior do que qualquer formação nacional. Assim, fomos solicitadas a produzir cinco páginas enfrentando essas questões a partir de nossas heranças; e isso foi o estímulo imediato para o texto publicado na Socialist Review e que circulou como um manifesto para ciborgues, ou, como eu realmente gostaria de intitulá-lo, “Manifesto Ciborgue”, em uma relação de brincadeira com o Manifesto Comunista de Marx. Houve porém outro estímulo relacionado com a mesma rede de pessoas: uma conferência internacional dos novos movimentos de esquerda em Cavtat, na antiga Iugoslávia (hoje Croácia), alguns anos antes do texto sair na Socialist Review. Pediram-me para representar o coletivo da Socialist Review nessa conferência, e isso me ajudou a pensar de um modo mais transnacional a respeito das informáticas da dominação, a política ciborgue e a importância extraordinária dos mundos de tecnologia da informação (TI). O ensaio proveio também da minha própria história como bióloga. Meu PhD é em biologia. Amei a biologia e me engajei profunda e apaixonadamente em seus projetos de conhecimento: suas materialidades, organismos e mundos. Mas também sempre me apropriei da biologia a partir de uma formação acadêmica igualmente poderosa em literatura e filosofia. Política e historicamente, jamais pude considerar o organismo como algo simplesmente dado. Estava extremamente interessada nos meios pelos quais o organismo é um objeto de conhecimento, como um sistema de produção e distribuição de energia, ou como um sistema de divisão de trabalho com funções executivas. Essa é a história do ecossistema como um objeto que só pôde vir à luz no contexto do manejo de recursos, o rastreamento de energias através dos níveis tróficos, os aparatos de marcação viabilizados pelas instalações nucleares de Savannah Rivers, e a emergência das guerras inter-disciplinares em cibernética, química nuclear e teorias de sistemas. Para mim, nunca foi realmente possível apropriar-me da biologia sem um tipo de consciência impossível da historicidade radical de tais objetos de conhecimento. Você lê pessoas como Foucault e nunca mais é a mesma. Mas nunca fui uma pós-modernista a partir de uma tradição fundamentalmente literária e arquitetônica. Para mim, a questão sempre girou em torno das materialidades da instrumentação de organismos e de laboratórios, [fui] sempre interessada nos vários não-humanos em cena. O “Manifesto Ciborgue” surgiu de tudo isso. NG: E, é claro, o “Manifesto” é um pronunciamento de teoria feminista. DH: É um documento teórico feminista – um posicionamento em relação ao mundo em que vivemos e à questão “que fazer?” Manifestos provocam ao perguntar duas coisas: em que diabo de mundo vivemos, e daí? A pergunta “que fazer?” [está] no panfleto de Lênin, de 1902, mas com uma resposta bem diferente em seu apelo por um partido de revolucionários dedicados e estritamente disciplinados. NG: Você disse anteriormente que há leitores que “levariam em conta o ‘Manifesto Ciborgue’ pela sua análise tecnológica”, mas ao mesmo tempo estariam inclinados a “ignorar o feminismo”(Haraway, 2004: 325). Talvez este seja um bom ponto de partida. Em qual sentido o “Manifesto Ciborgue” é um manifesto feminista? Você tem falado sobre um “feminismo que não abarca a Mulher, mas é para mulheres”(2004: 329). Em que se baseia exatamente tal feminismo? DH: Bom, isso é um assunto complicado e apenas podemos seguir algumas discussões. Nos termos de bell hooks, feminismo diz respeito ao movimento de mulheres, como um verbo, e não a algum tipo de dogma particular. Eu estava entre as muitas que foram arrebatadas pelos movimentos de mulheres da minha geração. Engajei-me na política do movimento de libertação de mulheres que surgiu no final dos anos 1960, e daí proveio uma herança muito pessoal, que tem a ver com suas segmentações de classe e de raça: minha compreensão do poder e dos limites do meu próprio feminismo histórico, em meus pequenos mundos coletivos. Mas daí veio também uma herança muito maior, que é tentar lidar com a esperança impossível de que a desordem estabelecida não é necessária. Essa herança vem da teoria crítica e vê o feminismo como um ato de recusa ao sofrimento profundo e histórico nas vidas das mulheres em toda parte, ao mesmo tempo em que lida [com o fato de] que nem tudo é sofrimento. Há algo na vida das mulheres que merece ser celebrado, nomeado e vivido, e há entre nós algumas necessidades culturais e organizacionais urgentes – quem quer que “nós” sejamos. O feminismo foi uma herança complicada, um lugar de políticas urgentes e um lugar de prazeres intensos por ser parte do movimento de mulheres. E aproximei-me de tudo aquilo como cientista, não com qualquer velho modelo de cientista, mas como uma bióloga; e como uma católica que recusa a igreja, mas é incapaz de se tornar uma humanista secular. A semiose é de carne e sangue e sobrevive de algum tipo de incapacidade de se contentar com uma semiótica que trate apenas do texto em alguma forma rarefeita. O texto é sempre de carne e costumeiramente não-humano, inacabado, não-homem. Isto era o feminismo, então, e é o que continua sendo para mim. NG: Alguns leitores do “Manifesto” observaram que “você insiste na feminilidade do ciborgue”(Haraway, 2004: 321). Isto está correto? Em uma passagem crucial você diz que o “ciborgue é uma criatura de um mundo pós-gênero”[2] (1991a.: 150 / 2009: 38); mas desde então você declara que “nunca gostou” do termo “pós-gênero” (Haraway, 2004: 328). Por que? Em um mundo de transversais, em que as fronteiras entre natureza e cultura não estão mais claras, o conceito de “pós-gênero” pareceria ser útil. Na conclusão do “Manifesto” você alude ao “sonho utópico” de “um mundo monstruoso sem gênero”(1991a: 181 / 2009: 98). A idéia de superar o gênero seria, então, nada mais (ou menos) que um “sonho utópico”? DH: Não! Obviamente gênero está entre nós mais feroz do que nunca. Há algumas dobras, mas gênero se refaz em uma variedade de formas. E há um mundo trans (trans-ing) em desenvolvimento, que torna gênero o substantivo errado. Pessoas “trans” fazem um trabalho teórico realmente interessante, incluindo uma ex-aluna minha – Eva Shawn Hayward – que se recusa a fazê-lo em relação às pessoas (2004). Muita coisa interessante está acontecendo sob os prefixos pós- e trans-. Não é um sonho utópico, mas um projeto de trabalho concreto. Tenho problemas com o modo como as pessoas se referem a um mundo utópico pós-gênero – “Ah, quer dizer que não importa mais se você é um homem ou uma mulher”. Isso não é verdade. Mas em alguns lugares de fantasia e criação de mundos (worlding), isto é de fato verdade, por bons ou maus motivos. NG: Então, como você pensa gênero em um mundo cada vez mais transversal? DH: Da maneira que Susan Leigh Star e Geoff Bowker me ensinaram e pensar: como trabalho categorial (veja Bowker e Star, 1999). Não divinize a categoria. Não elabore uma crítica e imagine que a categoria desapareceu apenas porque você fez uma crítica. Não basta você ou seu grupo descobrirem como a categoria funciona para fazê-la sumir; e concluir que a categoria é construída não significa que foi inventada do nada. Em alguns sentidos, estamos em um mundo pós-gênero; em outros, estamos em um mundo feroz de gêneros localizados. Mas talvez as teóricas “mulheres de cor” tenham acertado ao afirmar que estamos em um mundo interseccional. Isto é o que Leigh e Geoff queriam dizer quando elaboraram a categoria de “torção”. Vivemos em um mundo onde pessoas são criadas para viver simultaneamente várias categorias não-isomórficas, que as “torcem”. Então, em alguns sentidos, pós-gênero é uma noção significativa. Porém fico muito nervosa com o modo como essa noção se torna um projeto utópico. NG: Então você usou o termo pós-gênero para provocar, e as pessoas o conduziram a diferentes direções? DH: Sim. Mas e se for um mundo sem gênero tal como o compreendemos? Algumas pessoas acharam que isso significaria um mundo sem desejo, sem sexo e sem inconsciente, e eu não quis dizer isso. Mas eu de fato quis dizer que a teoria freudiana de inconsciente é apenas uma análise da vizinhança, ainda que poderosa. NG: Uma coisa que acho fascinante no “Manifesto” é sua complexa mistura de feminismo e cibernética. Afirma-se, por exemplo, que “Seres humanos, da mesma forma que qualquer outro componente ou subsistema, deverão ser situados em uma arquitetura de sistema cujos modos básicos de operação serão probabilísticos” (Haraway, 1991a: 212/ 2009: 62). Essa é uma extensão radical da famosa Mathematical Theory of Communication (1949) de Claude Shannon e Warren Weaver, na qual informação é definida em termos estatísticos. Em uma entrevista concedida em 1999 você disse que conhecia o trabalho de Norbert Wiener ao escrever o “Manifesto”(Haraway, 2004: 324), mas Shannon e Weaver também foram referências importantes? E quanto à cibernética de modo geral – é um campo que continua a influenciar seu trabalho? DH: Sim, Shannon e Weaver estavam lá. Eu os li, e as conferências de Macy também estavam lá, de modo geral. Meu orientador de dissertação foi Evelyn Hutchinson (1903-91), um homem maravilhoso: um ecologista teórico, matemático, biólogo, historiador natural, estudioso de manuscritos da Itália medieval – um erudito de sua geração, de origem inglesa (veja Hutchinson, 1979). Fugi da biologia do desenvolvimento e suas encarnações moleculares para seu laboratório porque todas as minhas células estavam morrendo no laboratório – em parte! Mas principalmente porque estava intelectualmente insatisfeita e tinha finalmente assumido que a biologia, para mim, era uma prática cultural-material. Precisava situar a biologia em sua intersecção com muitas outras comunidades de práticas, feitas de humanos emaranhados com outros, viventes ou não. O laboratório de Evelyn Hutchinson possibilitou isso. Em seu laboratório nós lemos Simone Weil, Shannon e Weaver, Virginia Woolf – esses eram os textos de “biologia”que líamos como parte de seu grupo de laboratório. Não era um grupo de laboratório sobre biologia em sentido estrito. Era um grupo de laboratório sobre “o que é interessante no mundo”. E muitos que vieram do laboratório de Evelyn – como Robert MacArthur (1930-72) – [eram] biólogos muito importantes. A parceria de MacArthur com E. O. Wilson em biogeografia insular (MacArthur e Wilson, 2001[1967]) é muito importante. MacArthur era um grande teórico cibernético do comportamento animal e um ornitólogo fabuloso. De qualquer modo, muitas pessoas saíram do laboratório de Evelyn profundamente interessadas por vários aspectos de cibernética, inclusive eu. Mas como não se interessar por essas coisas naqueles anos? A citação que você mencionou agora não é tanto o que eu quero que seja verdade, mas meu modo de contemplar o que me pareceu um imperativo, que os projetos de conhecimento desse tempo constituíram seus objetos de atenção em um sentido foucaultiano – como discursos constituem seus próprios objetos de atenção. Essa não é uma posição relativista. Não se trata de coisas sendo meramente construídas em um sentido relativo. Trata-se desses objetos que, não por escolha, somos.nós Nossos sistemas são entidades de informação probabilística. Isso não é a única coisa que nós somos ou que qualquer pessoa seja. Não é uma descrição exaustiva, mas uma constituição não-opcional de objetos, de conhecimento em operação. Não é questão de ter um implante, não é questão de gostar disso. Não é uma espécie de júbilo tecnológico deslumbrado com a informação. É a afirmação de que é melhor assumir isso – esta é uma operação de criação de mundos (worlding). Não é a única criação de mundo em curso, mas uma na qual é melhor viver sendo algo mais do que uma vítima. É melhor assumir que a dominação não é a única coisa que está acontecendo aqui. É melhor assumir que esta é uma zona em que é melhor ser os que se movem e se sacodem, ou seremos apenas vítimas. Apropriar-se do ciborgue: é disso, então que o Manifesto trata.. O ciborgue é uma figuração, mas também uma criação de mundo (worlding) obrigatória – que ao apropriar-se do ciborgue não se pode abarcá-lo – que é um projeto militar, um projeto do capitalismo tardio em profunda colaboração com novas formas de guerra imperialista – o campo de batalha eletrônico de McNamara é certamente um grande ancestral dos mundos ciborgues – assim como a companhia telefônica de Bell. E muito mais que isso – ciborgues abrem possibilidades radicais ao mesmo tempo. Isto é semelhante a Bruno Latour, mas eu dou muito mais espaço para a crítica de baixo do que Bruno Latour. Tenho mais simpatia pela teoria crítica do que Latour – muito mais. E estou muito mais disposta a conviver com heranças políticas e intelectuais indigestas. Preciso apegar-me a heranças impossíveis, muito mais do que suspeito que Bruno queira. Nossos tipos de criatividade tomam direções diferentes, mas são aliados. Então, sim, Shannon e Weaver estão lá no Manifesto. A cibernética está lá sob várias formas. Gregory Bateson está lá também, e através da linhagem de Bateson a segunda/terceira ordem de mundos cibernéticos que Katherine Hayles analisa (ver Hayles, 1999). Tenho simpatia por certos esforços cibernéticos de pensar por meio de autopoiesis. Lynn Margulis também está lá, com toda a hipótese de Gaia, incluindo suas coisas de simbiogênese. Não obstante, resisto profundamente a qualquer tipo de teoria de sistemas, incluindo a chamada cibernética de terceira-ordem, a autopoiesis e as abordagens de acoplamentos estruturais. Não me contento com nada disso, mas lembro que na cibernética há muito mais do que Norbert Wiener. NG: Parece haver um ressurgimento geral do interesse pela cibernética no momento em que debates sobre o “pós-humano” vieram à tona (por exemplo em Hayles, 1999). O subtítulo do seu ensaio de 1992 “Ecce Homo, não seria (não seriam) eu uma mulher, e outros impróprios/inapropriados” é “O humano em uma paisagem pós-humana” (em Haraway, 2004: 47-61). O que você quer dizer com “pós-humano”? É um conceito que você continua a achar útil? DH: Parei de utilizá-lo. Eu o usei por um tempo, inclusive no “Manifesto”. Creio que às vezes é meio impossível não usá-lo, mas estou tentando não usá-lo. Kate Hayles escreveu esse livro esperto e maravilhoso How We Became Posthuman (Como nos tornamos pós-humanos). Ali ela se situa na interface correta – o lugar em que as pessoas encontram aparatos de TI, onde mundos são reconstruídos como informação. Sou uma forte aliada de sua insistência, naquele livro, de alcançar as materialidades da informação. Não deixar ninguém pensar nem por um minuto sequer que se trata de imaterialidade, mas alcançar suas materialidades específicas. Estou com isso, com esse sentido de “como nos tornamos pós-humanistas”. Porém, a dicotomia humano/pós-humano é muito mais facilmente apropriada por deslumbramentos do tipo “vamos todos ser pós-humanistas e encontrar nosso próximo estágio evolucionário teleológico em alguma forma de tecnomelhoramento trans-humanista”. Para o meu gosto, o pós-humanismo é muito facilmente apropriado por projetos desse tipo, embora muitas pessoas que produzam reflexões pós-humanistas não façam assim. A razão pela qual recorri à idéia de “espécies companheiras” foi para me livrar do pós-humanismo. A idéia de espécies companheiras é o meu esforço para estar em aliança e tensão com os projetos pós-humanistas, porque penso é a noção de espécie que está em questão. Nesse sentido, estou com Derrida mais do que com outros, e com a leitura de Derrida realizada por Cary Wolfe (ver, por exemplo, Wolfe, 2003). Estou com as zoontologias, mais do que com o pós-humanismo, porque penso que a espécie está predominantemente em questão aqui; e espécie é uma dessas palavras maravilhosas que internamente são oxímoros. Essa abordagem insiste em seus significados darwinistas, incluindo considerar pessoas como Homo sapiens. Pensar em “espécies companheiras” permite questionar os projetos que nos constroem como espécie, filosoficamente ou de outras maneiras. “Espécie” diz respeito a trabalho categorial. O termo refere-se simultaneamente a várias linhas de significado – categoria lógica, unidades taxonômicas caracterizadas pela biologia evolucionária e a inexorável especificidade dos significados. Também não se pode pensar em espécies sem adentrar a ficção científica. Algumas das coisas mais interessantes sobre espécies são feitas por projetos de ficção científica literários e não-literários – projetos de arte de vários tipos. Pós-humano é um conceito restritivo demais. Então, optei por espécies companheiras, embora a expressão tenha sido sobrecodificada como significando cães e gatos. Eu me coloquei assim escrevendo primeiramente sobre cães. Mas penso que o “Manifesto Ciborgue”e no Manifesto das Espécies Companheiras (2003) são como apoios para uma interrogação das relacionalidades nas quais as espécies são postas em questão e nas quais o noção de pós-humano é um equívoco. NG: O que tentei fazer em meu próprio trabalho foi usar idéias de pós-humano para pôr em questão o pressuposto do humano. DH: Certamente. NG: Vejo o mesmo tipo de questionamento em sua resposta ao ensaio de Jacques Derrida (ver Wolfe, 2003) sobre as três feridas no narcisismo humano: a copernicana, a darwiniana e a freudiana. Você adiciona uma quarta ferida, que estaria “associada com as questões do digital, do sintético” (Haraway e Schneider, 2005: 139). O que é exatamente essa “quarta ferida”, e como ela se desenvolveu desde o tempo da escrita do “Manifesto”, especialmente tendo em vista as grandes transformações nas tecnologias de comunicação digital desde 1985? DH: Essa quarta ferida nos força a reconhecer que nossas máquinas têm vida própria. Não apenas fomos deslocados cosmologicamente da ficção de que o homem estava no centro, fomos também deslocados psicanalitica e zoologicamente. Fomos deslocados também do mundo construído como o lugar único da autopoiesis. A razão pela qual hesito a respeito de autopoiesis foi-me ensinada por uma de minhas alunas de graduação, Astrid Schrader, cuja primeira formação foi em física. Ela se incomoda com a autopoiesis por causa de seus fechamentos – porque nada se auto-organiza – é sempre por relacionalidade, e a auto-organização repete o problema das teorias de sistemas, daí ela recorre a Derrida de formas que realmente me ajudaram. Nós duas, juntamente com outra aluna de graduação, Mary Weaver, que escreve sobre trans-mundos, buscamos Isabelle Stengers em suas leituras do pensamento de Whitehead sobre abstrações como “iscas” (ver Schrader, 2006; Stengers 2002; Weaver, 2005). A tarefa é inventar abstrações melhores, e a autopoiesis provavelmente não é uma delas. Com Isabelle, então, sinto-me fisgada por alguma forma de pensamento do tipo “espécie em questão”. A quarta ferida ao narcisismo primário – essa questão da nossa relacionalidade com o que não é humano – começa a atingir nossas relacionalidades constitutivas com o maquínico mas com mais que o maquínico – com o não-vivente e o não-humano. Bruno Latour está tentando fazer isso também. Creio que há muitos de nós tentando, porque aí estão muitas questões urgentes no mundo. NG: No “Manifesto” você declara que “Nossas máquinas são perturbadoramente vívidas, e nós assustadoramente inertes” (Haraway, 1991a: 152/2009: 42). É uma afirmação jocosa destinada a provocar pensadores que continuam a tratar a agência humana como algo sagrado, anterior ou independente das máquinas? ou é uma declaração mais séria sobre a emergência de tecnologias inteligentes dotadas de agências e poderes criativos que rivalizam com os chamados seres “humanos”? DH: As duas coisas. É também uma queixa sobre a passividade de meus próprios amigos politizados, de mim mesma e de meus parceiros amigos intelectuais. É uma queixa. É semelhante à queixa de Bruno Latour sobre a estupidez dos praticantes da teoria crítica que apenas repetem a crítica e ficam empacados onde Adorno e Horkheimer estavam muito mais legitimamente empacados. O que eles fizeram naquele momento precisava ser feito. Mas é loucura permanecer empacado naquelas queixas inexoráveis sobre tecnologia e tecnocultura e não assumir a extraordinária vivacidade de que isso também nos diz respeito. É uma observação muito rabugenta sobre o tipo de trabalho que precisa ser feito, e que muitas pessoas estão fazendo. Tudo o que se deve fazer é procurar onde está sendo realizado concretamente o criativo trabalho cultural e intelectual, dentro e fora de tecnologias de escrita de todos os tipos. Katie King, creio, é a teórica mais interessante de tecnologias de escrita atualmente (veja seu Flexible Knowledges e Networked Re-enactmens). Ela está na Universidade de Maryland; eu a conheci como quando era estudante de graduação. Há uma quantidade enorme de trabalho cultural interessante que os teóricos críticos são incapazes de enfrentar. NG: Debates recentes sobre o humano/pós-humano também nos desafiam a repensar o conceito de social. Classicamente, o social tendeu a ser construído sobre uma concepção de um sujeito humano delimitado, que ficou difícil de sustentar à luz dos desafios recentes sobre o que conta como ser “humano”. Em Modest_Witness você faz uma quantidade de afirmações interessantes sobre o social. Você declara, por exemplo, que “relações sociais incluem não-humanos tanto como humanos como... parceiros socialmente ativos” (1997: 8). Mais adiante, você acrescenta que o social nunca é algo “ontologicamente real e separado” em si mesmo (1997: 68). Isto parece comparável à posição de Bruno Latour, que se recusa a ligar o social a uma noção onipotente de sociedade ou a forças sociais que fundamentariam e explicariam todos os outros fenômenos. Que papel o conceito de social tem em seu trabalho? DH: Tento deslocá-lo de seu lugar exclusivo nos fazeres humanos, que é o modo como no final das contas a maior parte dos teóricos sociais – não sempre, e Latour é um bom exemplo – mas, enfim, ainda assim, no final das contas a maior parte dos teóricos sociais realmente entende por relações sociais e história; e esaa é uma forma muito humana, que constitui a si mesma acima de e contra o que não é humano. Acredito que Derrida nos fornece as ferramentas críticas mais poderosas para entender como é que isso continua a ser feito. Mas creio também que Derrida se detém antes de nos mostrar como isto é feito. Estou trabalhando em um pequeno ensaio chamado “And Say the Philosopher Responded” porque Derrida fez este trabalho esperto “And Say the Animal Responded” (ver Wolfe, 2003) e outro trabalho esperto “The Animal That Therefore I Am” (O animal que logo sou) (Derrida, 2002). Nesse trabalho ele se confronta com seu gato e é de fato o seu gato! Para seu extraordinário crédito – e ele está solitário entre os filósofos – é um gato de verdade que chama sua atenção e o faz notar de que ele está nu – embora eu creia que o gato provavelmente não se importava que ele estivesse nu. Mas o que ele prossegue fazendo, de seu jeito muito criativo, é lidar com a vergonha da filosofia e a vergonha de se estar nu perante o mundo. A vergonha é muito mais masculina que humana, um ponto que Derrida se esquece de mencionar, porque é a sua nudez frontal total que motiva o argumento todo. Sua curiosidade sobre o gato agora se revela após essa primeira percepção crucial de que este animal não está “reagindo” mas “respondendo”. De forma estranha e trágica, Derrida se vê duplamente aprisionado precisamente no excepcionalismo masculino, chamado exepcionalismo humano, que ele está desconstruindo; primeiro, por sua visão parcial de apenas um único órgão descoberto e, em segundo lugar, ao falhar em sua obrigação de manter curiosidade sobre qual seria a preocupação do gato naquele olhar. Creio que essa curiosidade – o começo do cumprimento da obrigação de saber mais como uma consequência de ser chamado a responder – é um eixo crítico de uma ética não enraizada no excepcionalismo humano. Deleuze e Guatarri são muito, muito piores. Acho que seu capítulo sobre o devir-animal (Deleuze e Guatarri, 1987:232-309) é um insulto, porque eles não estão nem aí para os animais – as criaturas são uma desculpa para seu projeto anti-édipo. Observe como eles achincalham mulheres idosas e seus cães enquanto glorificam a alcatéia em seu “horizonte de devir” e suas linhas de fuga. Deleuze e Guatarri me deixam furiosa com sua completa falta de curiosidade a respeito das relações entre animais e das relações entre os animais e as pessoas; e também com o modo como eles desprezam a figura do animal doméstico em sua glorificação do selvagem em seu projeto monomaníaco do anti-édipo. E as pessoas selecionam Deleuze e Guattari como se fossem úteis para entender a socialidade além do humano. Besteira! Apesar de seus lapsos de cíclope, Derrida é muito mais útil. Mas estou falando sério a respeito das temporalidades, escalas, materialidades, relacionalidades entre pessoas e nossos parceiros constitutivos, que sempre incluem outras pessoas e outras criaturas, animais ou não, ao fazer mundos, ao criar mundos (worlding). Penso que “o social” como substantivo é, em cada pedacinho, tão problemático quanto “o animal” ou “o humano”; como verbo, porém, é muito mais interessante. Temos de imaginar um jeito de não realizá-lo como substantivo, mas sem jogar fora o bebê com a água do banho. O que pode significar o social, então? Não se pode proceder por analogia, porque não se quer antropomorfizar os parceiros não-humanos como um jeito de ir ao seu encontro. Quem precisa disso? NG: Mas é o que costuma acontecer. DH: Acontece sempre, porque não sabemos como fazê-lo de outra maneira. Penso em todo o trabalho realmente importante entre todos os que trabalham pelos direitos dos animais, filósofos e outros que o fazem desse jeito. Mas não podemos fazer isso desse jeito –não podemos antropomorfizar ou zoomorfizar. Precisamos de um novo trabalho categorial. Precisamos viver as consequências da curiosidade incessante dentro da operação mortal, situada e inexoravelmente relacional de criação de mundos (worlding). NG: Talvez seja um momento oportuno para retornar às três rupturas de fronteiras que enquadram sua definição de ciborgue no “Manifesto”. A primeira delas é a fronteira entre humanos e animais. Essa fronteira também é tematizada em detalhes em sua discussão sobre organismos transgênicos em Modest_Witness (1997: 55-69) e na discussão de parentesco em seu ensaio recente sobre espécies companheiras (2004: 295-320). Tendo em vista os avanços na genética e nas ciências da informação ao longo das últimas duas décadas, a linha divisória entre humanos e animais parece estar mais frágil do que nunca. Mas, ao mesmo tempo, sua idéia de espécies companheiras parece reforçar fronteiras entre espécies, assim como busca conexões e fatores comuns entre elas. Isso está correto? E talvez você possa explicar porque agora vê “ciborgues como irmãos caçulas” em uma “família queer, muito maior, de espécies companheiras” (Haraway, 2004: 300)? DH: De fato não acho que [a idéia de] espécies companheiras reforça as fronteiras entre espécies, mas posso ver como me situei de modo a ser lida dessa maneira. Há toda aquela seção no Companion Species Manifesto (2003) que começa a desmantelar a palavra “espécie”, mas não o faz bem o suficiente. E, como ciborgue, viver como espécie é não-opcional. Fomos criados no mundo (worlded) como espécies em um certo sentido foucaultiano de discursos produzindo seus objetos novamente. Duzentos anos de poderosos discursos biológicos sobre transformação do mundo, nos produziram enquanto espécies, e outras criaturas também. Estamos vivendo um momento de reconfiguração radical de trabalho categorial na biologia, sob a forma de biocapital e biotecnologia, que, como Sarah Franklin teoriza particularmente bem, dizem respeito a esses tipos de trans-relacionamentos que refazem parentesco. Sarah e eu estamos nessa conversação densa sobre parentesco, acerca de quando a família não é produzida genealogicamente – quando família é a palavra errada – quando parente e tipo de parentela estão sendo refeitos por meios “trans” (trans-ing) de todos os tipos – com certeza tipos genético-moleculares – e quando os bancos de dados transnacionais de biodiversidade são uma das maiores materialidades de seres transespécies, materiais-semióticos, dos dias de hoje. Então, estou muito interessada em espécies, não como categorias taxonomicamente fechadas e acabadas, mas como um contínuo trabalho de parentela que tem tipos de instrumentalização muito importantes nos dias de hoje – profundamente entrelaçadas com TI e o biocapital. O livroCompanion Species é um primeiro subterfúgio meu, tentando repensar espécies com ciborgues, cães, oncomouses, cérebro, banco de dados – a família de parentes no Modest_Witness – estou falando sério sobre isso. Creio que outras pessoas estão fazendo um trabalho melhor do que eu a esse respeito, e é um projeto coletivo. Penso que vivemos nesses mundos implodidos – mundos onde viver e morrer estão em jogo de modo diferencial. A espécie é um desses mundos que está sendo refeito. Irredutivelmente, amo as criaturas reais, como Cayenne [um dos cães de Donna]. Aquele livro começa com um pequeno pornô leve que surge de uma “conversa proibida” entre Cayenne e eu. Este “comércio oral” é talvez minha resposta à nudez frontal de Derrida diante de seu gato. Acho que estou mais preocupada com o que a cadela acha que eu quero dizer, e com o que ela quer dizer, e com o que queremos dizer juntas, do que com o que os filósofos, ou melhor, a máquina filosofia, tem se preocupado até agora. O livro tenta levar a sério o fato de todos os objetos de amor serem inapropriados. Se você está de fato amando, você sempre se descobre amando o tipo errado de objeto de amor – mesmo se você está casada, mesmo se totalmente mantida pelo estado – o amor a desfaz e refaz. Então, como no “Manifesto Ciborgue”, também estou tentando lidar com o lugar onde nós mesmas nos encontramos. Essa criatura – Cayenne – e eu, Donna: onde nós nos encontramos? Quando minha cadela e eu nos tocamos, onde e quando estamos? Quais criações de mundo (worldings) e que tipos de temporalidades e materialidades irrompem nesse toque, para que e para quem se requer uma resposta? Por exemplo, aterrisamos no rearranjo de bancos de dados da biodiversidade, dos projetos genômicos e pós-genômicos de cães e humanos Aterrisamos na herança das consolidações de terra na corrida pós-ouro no oeste dos Estados Unidos e suas práticas de mineração e pecuária, suas práticas alimentares. Aterrisamos onde cães são parte da força de trabalho. Aterrisamos nos rodeios e seu legado sobre os direitos dos animais. Aterrisamos em muitas temporalidades. Aterrisamos naquilo que Harriet Ritvo (1987) escreveu tão bem no Animal State, ou no que Sarah Franklin chamou de “riqueza da raça” e nas práticas de reprodução contemporâneas (veja seu Dolly Mixtures, no prelo). Levar a sério essa relação e desemaranhar quem somos aqui nos faz aterrisar em muitos mundos concatenados, em um “devir” muito situado. Então a questão fundamentalmente ética e política é: a que você presta contas se tentar levar a sério aquilo que você herdou? se levar o amor a sério, o que acontece? você pode prestar contas a tudo, então você tenta imaginar como pensar a respeito do mundo por meio de conexões e encontros que te refazem, não por meio de taxonomias. Então, cá estamos em nossa conversa criminosa, relação proibida, comércio queer; e eu creio que eu/nós terminamos prestando contas diferentemente – e diferentemente curiosas – ao rastrear essas ligações do que eu/nós estávamos no começo. NG: Quando conversei com Bruno Latour, ele disse que o grande desafio agora é trabalhar a questão de como colecionar e classificar coisas, se você pensa o mundo por meio de conexões. DH: Exato, e aí creio que Bruno e eu estamos em um alinhamento inexorável, mesmo quando causamos indigestão um ao outro, por conta do modo como cada um de nós trabalha. Creio que amamos o trabalho um do outro porque é isso que importa. NG: A segunda ruptura de fronteiras no “Manifesto” é entre humanos e máquinas, na qual já tocamos agora. Perto da conclusão do “Manifesto” você declara que: A máquina não é uma coisa a ser animada, idolatrada e dominada. A máquina coincide conosco, com nossos processos; ela é um aspecto de nossa corporificação. Podemos ser responsáveis pelas máquinas; ela não nos dominam ou nos ameaçam. Nós somos responsáveis pelas fronteiras; nós somos essas fronteiras. (1991a: 180 / 2009: 97) Isto implica que humanos sempre foram máquinas (ou sistemas autopoiéticos, em um sentido cibernético), ou que não há mais obstáculos que impeçam fusões da consciência humana ou do corpo humano com as tecnologias de informação? ou haverá aqui barreiras potenciais? Katherine Hayles, por exemplo, argumentou que: Humanos podem entrar em relações simbióticas com máquinas inteligentes... eles podem ser substituídos por máquinas inteligentes... mas há um limite para o modo como humanos podem ser articulados sem emendas com máquinas inteligentes, que permanecem distintamente diferentes de humanos em suas corporeidades (1999: 284) Como você se situa nessa questão? DH: A resposta curta é que concordo em grande parte com Kate Hayles, mas colocaria em termos um pouco diferentes que talvez tenham uma diferença significativa. É claro que há barreiras. Não posso acreditar na idiotice tecnológica deslumbrada das pessoas que falam em baixar a consciência humana para um chip. NG: Você se refere a Hans Moravec? DH: Sim, me refiro a esses caras que de fato falam nisso – e são caras. É um tipo de tecno-masculinismo auto-caricatural. Eles deveriam se envergonhar de si mesmos! Sinto-me regularmente incapaz de acreditar que eles realmente queiram dizer isso. Como leio suas coisas, tenho que assumir que sim, eles querem dizer isso. É estúpido, bobo e indigno de comentários, exceto pelo fato de que pessoas poderosas convertem isso em projetos, então você é obrigada a comentar. Agora, dito isso, creio também que, por meio desse tipo de leitura, pode-se refazer a história dessa coisa ciborgue por todo o tempo e em toda parte, mas não gosto de fazer isso – não sou do tipo Lovelock. Não gosto daquela metanarrativa de que as coisas sempre foram assim. Creio que a estória do ciborgue é historicamente limitada, que não diz tudo sobre as junções humanos-máquinas. Estou interessada nas diferenças históricas tanto quanto nas continuidades, e creio que o modo ciborgue de fazer quem somos tem uma história muito recente. Talvez se possa datá-la do final do século XIX, ou talvez seja melhor rastreá-la até os anos 1930, ou até a Segunda Guerra Mundial, ou mesmo depois. Dependendo do que se quiser trazer ao primeiro plano, pode rastrear essa história de diferentes modos, mas é muito recente. Ciborgues tem a ver com essa criatura interessante chamada informação, e você não pode tratá-la a-historicamente – como se “informação” se referisse a algo que existiu desde sempre em todos os lugares. Isso é um erro porque você não alcança a ferocidade e especificidade do agora. Você também não pode usar “humano” a-historicamente; ou como se “humano” fosse uma coisa apenas. “Humano” requer um amontoado extraordinário de parceiros. Humanos, onde quer que você os rastreie, são produtos de relacionalidades situadas com organismos, ferramentas e muito mais. Somos uma bela multidão, em todas as nossas temporalidades e materialidades (que não se apresentam umas às outras como containers, mas como verbos co-constitutivos), incluindo as que falam da história da terra e da evolução. Quantas espécies estão no genus Homoagora? muitas. E há muitos genera para nossos ancestrais próximos, bem como para parentes paralelos. Se você ainda está interessada em bioantropologia, antropologia física e primatologia, como eu estou, há muita coisa acontecendo taxonomicamente que é bem interessante. Todos esses humanos estão engajados com ferramentas, de várias maneiras; mas um monte de outros animais também, inclusive corvos. Pense em tudo o que está acontecendo agora no estudo de cognição e comportamento de aves. Percebeu-se que as aves fazem ferramentas de uma maneira muito mais profunda, do que jamais havíamos pensado. Isto é grande para a história da terra. Mas os ciborgues são recentes. Humanos como ciborgues são muito caçulas e ainda são uma multidão multiespécie – espécie no sentido de muitos tipos de atores, orgânicos ou de outros tipos, como falamos antes. NG: Senti que havia uma implicação na sua afirmação de que você sempre leu humanos como uma forma de máquina – um tipo de leitura cibernética. DH: Não. Penso que os tipos lovelockianos nos levariam a ler humanos desse modo, mas eu não leio. Creio que aquelas histórias são muito mal conduzidas. Estou falando sério cobre o clamor ontológico de que “isto é o que fomos feitos para nos tornarmos”. Realizamos a vida dessa maneira, como ciborgues – mas essa não é a única maneira pela qual realizamos a vida. Há muitos “nós” aqui, e ninguém está em um único “nós”, então falo realmente sério que isto é uma afirmação ontológica sobre o mundo, e creio que sei algo a respeito de como nos tornamos assim. Susan Leigh Star é quem coloca isso de modo mais poderoso – ela e Geoff Bowker, em seu livro Sorting Things Out (1999), no qual eles falam em “torção”, para entender como as pessoas têm de viver em relação a uma série de sistemas de padronização simultaneamente obrigatórios, nos quais elas não conseguem se encaixar, mas com os quais precisam conviver. Esse é o modo pelo qual me interesso. Não como estórias pacíficas sobre a história do mundo. Faço metanarrativas o tempo todo. Estou interessada em grandes histórias, mas não deixo que sejam uma só. Seres humanos sempre viveram em parceria. Ser humano é ser um amontoado de relacionalidades, mesmo se você está falando sobre o Homo erectus. Então são sempre relacionalidades, mas não são sempre sobre máquinas, muito menos tecnologias de informação. NG: A terceira fronteira discutida no “Manifesto” é possivelmente a mais elusiva – aquela entre os reinos do “físico e não-físico”. Seu ensaio original não discute a linha divisória com muitos detalhes, mas isto se tornou um ponto focal em debates recentes sobre mídia e estudos culturais. Estou pensando, por exemplo, acerca de mudanças recentes sobre as conexões entre o material e o virtual (Hayles) ou hardware e software (Kittler). Esta conexão entre o físico e o não-físico parece central para sua leitura dos corpos como “nodos materiais-semióticos” (1991b: 208). Também parece central para a sua discussão posterior sobre propriedade intelectual no Modest_Witness (1997: 70-94). Como você concebe esta linha divisória entre “o físico” e o “não-físico” hoje? DH: Reli aquela parte porque estou bem descontente com o que sucedeu ao “Manifesto” ali. Foi um tipo de tradução do dualismo mente-corpo e que se tornou material-semiótico – você está correta – e ainda é um marco provisório para o esforço de tentar nomear isso melhor analiticamente. Há um ponto simples aqui – com o qual Kate Hayles, creio, está de acordo – de que o virtual não é imaterial. Quem pensa que é, está maluco. Fronteiras separando “físico” e “não-físico” sempre dizem respeito a um modo específico de criação de mundos (worlding); e o virtual talvez seja um dos aparatos nos quais se investe mais pesadamente no planeta hoje – seja investimento financeiro, mineração, manufaturas, processos de trabalho, e vastas migrações de trabalho e recursos externos, que provocam longos debates políticos, vários tipos de crises no estado-nação, reconsolidações do poder nacional de alguns modos e não de outros, práticas militares, subjetividades, práticas culturais, arte e museus. Não importa qual seja o assunto, mas se você pensa que virtualismo é imaterial, não sei em que planeta você vive! Mas a palavra a convida a ser pensada como imaterial, o que é um movimento ideológico. Se alguma vez precisamos de análise ideológica, é para entender de que modo o virtual entendido como imaterial é um desses erros que os teóricos críticos nos ensinaram a perceber. Acreditar que de alguma forma há este devir descosturado, livre de fricções é um erro ideológico que devíamos ficar espantados de ainda cometer. Se queremos entender porque ainda o cometemos, precisamos de mecanismos psicanalíticos. Precisamos compreender como funcionam nossos investimentos nessas fantasias. E não podemos entendê-los sem algum tipo de noção retrabalhada de inconsciente. Temos de entender o investimento psíquico na fantasia se quisermos compreender como as pessoas leem o virtual como se fosse imaterial. NG: Uma corrente comum que permeia o “Manifesto” até o Modest_Witness é a idéia de que todas as formas de vida e cultura estão se tornando cada vez mais mercantilizadas. Em Modest_Witness, por exemplo, você descreve em detalhes a mercantilização global dos recursos genéticos, e com isso a mercantilização da própria vida. Isto parece ir contra as recentes tentativas vitalistas de procurar processos criativos na vida. Ao invés disso, você argumenta que as patentes reconfiguram organismos como invenções humanas (Haraway, 1997: 82) e, paralelamente, a genética se torna um meio para programar o futuro. Nessa leitura, a vida se torna um lugar de poder tanto quanto de criatividade. No “Manifesto” você se refere à noção de Foucault de “biopoder”(1991a: 150/ 2009: 37), e em Modest_Witness declara que o ciborgue habita um “regime espaço-temporal modificado” de “tecnobiopoder”(1997: 12). O que exatamente é “tecnobiopoder”? e você vê alguma esperança na oposição vitalista à mercantilização ou ao registro comercial de formas de vida? DH: Aí há muitas questões. A formulação de Foucault de biopoder permanece necessária, mas precisa ser empreendida, por assim dizer. Foucault não estava fundamentalmente imerso na re-criação de mundos (re-worlding) que a figura do ciborgue nos faz habitar. Seu senso de biopolítica de populações não desapareceu, mas foi retrabalhado, modificado, trans-feito (trans-ed), tecnologizado e instrumentalizado de diferentes modos, de uma forma que me fez inventar uma nova palavra – tecnobiopoder – que nos faz prestar atenção ao tecnobiocapital e ao capital ciborgue. Isto inclui entender que o prefixo bio é gerador e produtivo. Foucault compreendeu que a produtividade do bio- não é apenas humana. Ele compreendeu que se trata de provocações de produtividades e geratividades da própria vida, e Marx compreendera isso também. Mas temos que dar a isso uma nova intensidade, pois as fontes de mais valia, dizendo cruamente, não podem mais ser teorizadas exclusivamente como poder de trabalho humano, ainda que isso permaneça parte do que estamos tentando imaginar. Não podemos perder de vista o trabalho humano, mas o trabalho humano é reconfigurado pelo capital biotécnico. O esforço de produzir outros termos – tecnobiopoder e material-semiótico – é outro modo de entender essas parcerias múltiplas que são fonte de riqueza, e a fonte de transformações e apropriações de riqueza e da reconstituição do mundo em formas de mercadorias, em toda parte e em todo tempo, e nem sempre por privatizações (enclosures). A imagem que normalmente usávamos para contar a estória da mercantilização era a privatização de coisas comunais, mas não é suficiente. Por exemplo, genomas não estão sendo privatizados (ou não estão apenas sendo privatizados); mas emergem da ação de muitos atores, humanos ou não. Genomas estão gerando novas formas de riqueza e, como notam Sarah Franklin e Margaret Lock (2003), também novas formas de viver e morrer. Privatização é uma metáfora muito estreita. Você não pode entender o tecnobiocapital por meio das mercantilizações agrícolas do século XVIII. Há muito mais acontecendo do que privatizações. Precisamos de outras imagens para entender que tipo de coisas acontecem na mercantilização, onde estão as rachaduras, onde está a vivacidade. Isto é vitalismo? Não sei. Não é oposição vitalista. Creio que precisamos abordar isso com um espírito mais foucaultiano do que por oposição vitalista. Isto significa se apropriar das generatividades para compreender que nem tudo é opressão, e reforçá-las, construir as alianças, fazer as redes de parentela. Falei sobre parentela como afinidade e escolha, e as pessoas corretamente apontaram que isso soa demasiadamente como se todo mundo fizesse escolhas racionais o tempo todo, que não é bom o bastante. Há todo tipo de processos inconscientes e solidariedades em operação que não são pautados por escolhas. Apropriar-se do tecnobiopoder e apropriar-se da configuração material-semiótica do mundo, na forma de espécies companheiras, onde o ciborgue é uma das figuras, mas não a dominante – é o que estou tentando fazer. NG: Em uma passagem de Modest_Witness você fala sobre a possibilidade de construir novos universais para além de “humanos e não-humanos”. Embasando este projeto está a ideia de que “linhas divisórias e o rol de atores – humanos e não-humanos – permanecem definitivamente contingentes, cheios de história, abertos à mudança”(Haraway, 1997: 67-8). Paralelamente, no entanto, há no “Manifesto” a ideia de que a informação é o novo universal, e o que torna possível a linha transversal através de animais–humanos-máquinas seria o compartilhar de protocolos e códigos similares subjacentes. Talvez esse seja o problema, porque se tudo pode ser codificável e disposto em um “campo de diferenças”, então toda forma de vida e de cultura compartilha uma similaridade estrutural. Pensadores como Jean Baudrillard (1993) descreveram essa situação como “o Inferno do mesmo”, no qual a alteridade desaparece. Para você, isto é uma preocupação? DH: Sim, com certeza. Creio que no “Manifesto” aquelas seções sobre um universal recém-produzido e não-opcional não tratavam de uma situação desejável, mas sim de uma ameaça. Creio que muita gente leu aquelas seções como se expressassem algo que eu apoiaria de algum jeito estranho. Nunca foi. Eu estava me apropriando descritivamente de um pesadelo, e não afirmando que essa seria a verdade inexorável. Exigem-nos viver nesse pesadelo de maneira não-opcional. Esse pesadelo está se tornando real, mas não é o que tem que existir, nem é a única coisa a acontecer. Apropriar-se do pesadelo, portanto, não é ceder a ele como se fosse tudo o que existe, mas um jeito de tirar daquilo que aquilo não tem que existir. Mesmo compreendendo que o pesadelo deva ser desmantelado, não se trata meramente de um sonho. Práticas efetivas estão operando desse modo. Como abordar isso? Como deter isso? Não adianta simplesmente reprimir tudo – promovendo mais e mais regulações contrárias – você conhece o tipo de abordagem que a bioética tem, no limite. Mas como abordar os aparatos de generatividade, inclusive compreender os prazeres e possibilidades? Como abordá-los com muitas recusas, mas não apenas com recusas? Acho que Baudrillard desiste de algum modo. NG: O modo como leio é quase como se tudo se tornasse transversal porque partilha algo que pode ser intercambiado. DH: Sim, é como se Baudrillard terminasse acreditando em seu pesadelo fantástico de trocas livres. NG: Creio que o que ele faz, então, é procurar formas de singularidade que não possam ser trocadas. DH: Sim, mas ele cede demais, eu acho. NG: A propósito disso, gostaria de perguntar sobre sua concepção de “informática da dominação”. Em uma das seções mais impactantes do “Manifesto”, você lista um número de características associadas com a mudança da velha “dominação hierárquica” no mundo industrial para “as novas redes assustadoras” da era da informação (1991a: 161 / 2009: 59). A mais importante parece ser a meta-transição entre o “patriarcado capitalista branco” para uma “informática da dominação”. O que é exatamente a informática da dominação, e de que modo você vê mudança nas formas de poder ligadas a raça, capitalismo e patriarcado? DH: Usei a expressão “informáticas de dominação” porque me livrou de dizer “patriarcado capitalista imperialista branco em suas versões contemporâneas recentes”! Era também uma provocação para repensar as categorias raça, sexo, classe, nação etc. As categorias não desaparecem, elas são intensificadas e refeitas. Talvez devêssemos parar de usar substantivos. Por outro lado, não se pode simplesmente parar, porque as racializações se tornam cada vez mais ferozes. Formas novas de gênero – tanto quanto as antigas – estão entre nós. Não se pode simplesmente descartá-las. Por outro lado, a expressão “informáticas da dominação” faz dois tipos de trabalho para mim. Torna mais difícil fazer qualquer coisa parecida com uma lista de adjetivos e substantivos. E nos força a lembrar que estas formas de globalização, universalização e quaisquer outras –izações que operem com informática são reais e interseccionais. As redes não são onipotentes, são interrompidas de um milhão de modos. Você pode ter sensações instantâneas: num minuto, parecem controlar todo o planeta; no minuto seguinte parecem um castelo de cartas. É porque são ambas. E muito mais acontece, além disso. A questão, então, é tentar viver nessa beirada – não ceder aos pesadelos do apocalipse, manter-se nas urgências e perceber que a vida cotidiana é sempre muito maior do que suas deformações – perceber que mesmo quando a experiência é mercantilizada, volta-se contra nós e transforma-se em nosso inimigo, nunca se trata apenas disso. Há muito mais acontecendo, coisas que nunca são nomeadas por nenhum sistema teórico, incluindo as informáticas de dominação. NG: Isso está bem alinhado com sua posição no “Manifesto”, em que você se recusa a ver a tecnologia em termos exclusivamente positivos ou negativos. Por um lado, por exemplo, você delineia os novos “circuitos integrados” de poder militar ou capitalista, juntamente com as práticas de trabalho hiper-exploradoras que caracterizam a nova era da mídia. Por outro, você se coloca contra a idéia de que a dominação é o resultado necessário do desenvolvimento tecnológico (1991a: 154 / 2009: 45). Enquanto isso, no Modest_Witness, você se posiciona no “fio da navalha” entre a “paranoia” de que “a conexão entre capital transnacional e tecnociência de fato define aquele mundo” e “a negação de que práticas grandes, distribuídas e articuladas estão de fato se esbaldando nessa conexão” (1997: 7). Você ainda se posiciona desse modo? DH: A resposta curta é sim.. Como não ficarmos aterrorizados, em algum estado de paranoia coletiva, quando não vemos nada além das conexões – este tipo de fantasia paranoica de sistemas? Claramente este é o pesadelo, uma configuração fantástica que, em si mesma, é parte do problema. Ao mesmo tempo, não se pode enfrentar isso com o deslumbramento tecno do tipo “vamos baixar a consciência humana no chip mais recente”. Não dá para se livrar da dor e do sofrimento desse modo. E também não dá para se livrar disso com qualquer tipo de negação – nem uma nova versão de humanisno, ou reformismo, nem achar que “não há nada de errado”. Algo está profundamente errado; no entanto, isso não é tudo o está acontecendo, Esse é o nosso recurso para refazer conexões – nós nunca começamos do zero. NG: Pensando em termos de conexões, parece que o poder se torna crescentemente efetivo ao concentrar-se em “condições de fronteira e interface, em taxas de fluxos através de fronteiras, não na integridade de objetos naturais” (Haraway, 1991b: 212). Isto significa, por sua vez, que a resistência – se podemos chamá-la assim – poderia se desenvolver por meio de um colapso na comunicação, ou pela formulação de códigos que impeçam a tradução fácil de todas as formas culturais-naturais. Em vista disso, o ruído –termo chave em pensamento cibernético – ganha maior importância política? DH: Sim, creio que sim. Alguns fenomenologistas no Chile, no período anterior a Pinochet, estavam interessados em colapsos. É um lugar extraordinariamente interessante, em que há coisas que não estão funcionando e a fantasia da comunicação perfeita não se sustenta. Talvez por causa da minha herança católica de fascínio pela figuração, interesso-me por tropos como lugares onde se tropeça. Tropos são muito mais do que metáforas, metonímias e toda a estreita lista ortodoxa. Ruído é apenas uma figura, um tropo pelo qual me interesso. Tropos referem-se a gaguejos, tropeços. Referem-se a colapsos, por isso são criativos. É por isso que você chega em algum lugar que não esteve antes, porque algo não funcionou. NG: Paralelamente, em seu trabalho, você atribui um papel proeminente ao sonhar (dreamwork) Você afirma que não é a forma de sonhar associada com o insconciente freudiano (2004: 323), mas antes uma tentativa de mapear como as coisas são e como poderiam ser de outra maneira (o que você vê como o projeto da teoria crítica). Esse encontro imaginário com a alteridade parece repousar no coração do que você chama de “crítica”(2004: 326). Como a crítica, definida desse modo, atua no “Manifesto”? DH: Suponho que um tipo de esperança fantástica permeia um manifesto. Há uma insistência, sem garantias, de que a fantasia de um “outro mundo” não é escapismo mas uma ferramenta poderosa. Crítica não é futurismo nem futurologia. É sobre aqui e agora, se pudermos aprender que somos mais poderosos do que pensamos e que a máquina de guerra não é o que somos. Não há nenhuma base firme para isso, é uma espécie de ato de fé. Mas é também um ato de compreensão do que é a vida, não apenas sua própria vida, mas um tipo de sensibilidade etnográfica também. Por onde quer que você ande e observe profundamente, você percebe que as pessoas, mesmo vivendo nas piores condições, não estão acabadas, não estão destruídas. Deve-se correr o risco de perceber como a vida das pessoas não está acabada, mesmo sob as piores condições, pisoteadas e oprimidas. NG: Sua idéia do sonhar como crítica também levanta questões interessantes sobre a conexão entre teoria e ficção. Quando me deparei com o primeiro ensaio de Manfred Clynes e Nathan Kline sobre “ciborgues e viagens ao espaço” achei que podia ser lido como ficção científica, com sua ênfase em alterar “as funções corporais do homem para fazer frente às condições dos ambientes extraterrestres (1995: 29). No princípio do “Manifesto” você segue um caminho semelhante ao definir o ciborgue como “uma criatura de realidade social e também uma criatura de ficção”(1991a: 149 / 2009: 36). Posteriormente, no Modest_Witness, você diz que organismos transgênicos são “ao mesmo tempo completamente ordinários e coisas de ficção científica”(1997: 57). Isto implica que não há uma linha divisória clara entre “realidade social” (seja ela qual for) e ficção? E quanto à teoria (social)? Seria apenas outra forma de ficção, ou algo que deveria ser tratado diferentemente? DH: Bem, essa é uma outra maneira com que tento atingir aquilo que experencio no mundo, que é a implosão. As linhas divisórias tentam classificar coisas da melhor maneira possível, às vezes por boas razões. Às vezes há boas razões para demarcar a diferença entre realidade social e ficção científica, mas não devemos acreditar que tais categorias sejam de fato coisas ontologicamente diferentes e pré-estabelecidas. NG: Categorias e conceitos são ficções, então? DH: São sempre provisórias. Se por “ficção” se quer dizer “invenção”, a resposta é não. Porém, se por ficção se quer dizer o que tentei descrever emPrimate Visions (1990) – formação ativa – então sim. Fato e ficção têm uma interessante conexão etimológica: fato é particípio passado, feito, e ficção ainda está no fazer-se. Se por ficção se quer dizer isso, então a resposta sim. A razão pela qual tenho problemas para responder essa questão é porque ela assume que realidade social e ficção científica, (ou ficção de modo mais abrangente), são algo dado, que existe uma linha divisória e que essa linha pode ser removida pela vontade. NG: Não necessariamente, fico imaginando como você imaginou isso. DH: Tenho problemas para responder a questão por causa de sua sintaxe. O trabalho semiótico – incluindo o sonhar – faz parte do que torna o mundo real. Clynes e Kline são um bom exemplo. Eles estão envolvidos em projetos reais, em um ambiente institucional de projetos reais múltiplos. A realidade social estava sendo criada para acontecer lá, e era um sonho fantástico. NG: No contexto do “Manifesto”, quando você diz que o ciborgue é uma criatura da realidade social bem como uma criatura de ficção, nunca se trata então de isto-ou-aquilo, mas sempre ambos. DH: Sim, é sempre ambos. Isto não significa que não se deva fazer um pequeno trabalho de classificação, mas deve-se lembrar que é trabalho de classificação. NG: Apenas para continuar com a questão de método. Em uma entrevista recente você não fala em categorias ou conceitos estáticos, mas em “tecnologias de pensar dotadas de materialidade e efetividade” (2004: 335). O que são tais tecnologias? E, talvez num tom diferente, você também parece se colocar contra o que chama a “tirania da clareza” que continua a governar a pesquisa atualmente. Por que? Imagino que, em parte, é porque você está procurando conexões complexas, ontologias sujas... DH: E o inexorável estado de alerta de que o mundo está para tropeçar, que a comunicação está para tropeçar, que toda linguagem é trópica, incluindo a linguagem matemática. A quuantificação é uma prática extraordinária de empregar tropos, muito poderosa e extremamente interessante. Deve ser estimulada e sustentada. Os matemáticos deveriam receber muito mais dinheiro.. A tirania da clareza diz respeito à crença de que toda prática semiótica é imaterial. É o mesmo erro de pensar que o virtual é imaterial. É o erro de pensar que relação sexual, comunicação, conversação, engajamento semiótico estejam livres de tropos ou sejam imateriais. De novo, trata-se de um compromisso ideológico. NG: E as tecnologias de pensar? O que são e como você as põe para funcionar? DH: Acho que todo tipo de coisas se encaixa nessa categoria que já estávamos discutindo. Mas vamos tentar nomear algumas com um pouco mais de trabalho de fronteiras, e desenhar algumas fronteiras mais úteis entre elas. Creio que treinar com minha cadela é uma tecnologia de pensar para ambas, porque provoca, por meio da prática de aprendermos a nos focar uma na outra, a fazer algo que nenhuma de nós poderia fazer sozinha; e a fazer de uma maneira regrada, ao jogar um jogo específico com regras arbitrárias que permitem jogar ou inventar algo novo, algo além da comunicação funcional, algo aberto. Na verdade, é exatamente o que brincar significa: um jogo que dá um espaço suficientemente seguro para se fazer algo que seria perigoso de outro modo. Cães sabem que, quando “deitam”, fazem seu parceiro fazer algo que não conseguiriam se não tivessem “deitado”. Deram um sinal meta-comunicativo ao seu parceiro de que não irão atacá-lo. O sinal é lido dessa forma, o que cria um espaço livre interessante, no qual os jogadores acabam fazendo coisas que os constituem como seres materiais-semióticos diversos do que eram antes. Brincar é realmente interessante; e nós, humanos, estamos longe de ser os únicos que brincam. Meus cães e eu temos esta prática de treinar. É uma tecnologia de pensar, em parte porque me faz compreender de um modo diferente o que Clark Thompson (2005) chama de coreografia ontológica, e me faz acessar a material-semiose diferentemente e pensar ligações e invenções. Mas esse é apenas um domínio pequenino das tecnologias de pensar. Também creio que as práticas etnográficas são tecnologias de pensar. Creio que quase qualquer projeto de conhecimento sério é uma tecnologia de pensar, na medida em que refaz seus participantes. Ela o alcança, e depois disso você não é o mesmo. Tecnologias rearranjam o mundo para determinados propósitos, mas também vão além da função e do propósito para algo aberto, algo que ainda não é. NG: Talvez um diálogo possa ser visto nesse sentido como uma tecnologia de pensar. Penso, por exemplo, no simpósio de Platão, e no sentido de que você nunca entra em um diálogo na mesma posição em que o deixa, porque as coisas mudam no seu decorrer. DH: Exatamente. Trabalho dialógico é exatamente isto. Não se trata de síntese dialética, a não ser de forma parcial e provisória. NG: Um aspecto subsequente de sua metodologia é o que você chama de “pragmática”, o que entendo se referir a uma tentativa de estabelecer conexões entre, por exemplo, objetos, espécies e máquinas; e seguir essas conexões em detalhe para ver como funcionam. Você dá os exemplos de “chip, gene, ciborgue, semente, feto, cérebro, bomba, banco de dados, ecossistema” e diz que “são densidades que podem ser suavizadas, que podem ser arrancadas, que podem ser explodidas, e conduzem a mundos inteiros, a universos sem ponto final, sem fim” (2004: 338). Nessa abordagem, a “relação” é considerada “a menor unidade de análise possível” (2004: 315). Mas como você sugeriria tais procedimentos de trabalho, tendo em vista que as relações entre as entidades acima não são infinitas, mas estão em constante mudança? Que dificuldades você vê ao estudar as conexões entre entidades que estão evoluindo em um ritmo acelerado? Não há o perigo de que tal pesquisa esteja sempre em descompasso? DH: As coisas mudam rapidamente e acho que isto é um fato. Mas acredito que há muitas continuidades que esquecemos se incorporarmos esse tipo de euforia da velocidade em nosso pensamento. Há um aspecto da euforia da velocidade virilioesca[3] na teoria cultural que nos confunde. Sou tão atingida pelas continuidades densas quanto pelas reformulações profundas e pelas mudanças rápidas que estão em curso. Creio que precisamos prestar atenção nas continuidades densas como um meio de profilaxia contra a euforia da velocidade, como estética cultural ou como estética cultural-teórica. Isso é uma coisa. A outra é que nós não precisamos tanto de métodos quanto de práticas, e nós já estamos envolvidos nelas. Além disso, acho que grande parte do que nos interessa, enquanto trabalhadores intelectuais, não é fruto de nossa própria escolha. Creio que lidamos com aquilo que somos chamados a fazer. Há certo senso ético, intelectual e físico de vocação, de responder àquilo que percebemos ser, onde nos encontramos, e com quem estamos. Creio que é um tipo de questão ética de responsividade, mais do que escolha. Não se trata muito de escolha. Não acho que sentamos e decidimos o que é importante. Acho que lidamos de alguma maneira com o que está acontecendo, e o método de trabalho é inexoravelmente colaborativo. Então, se você sentar e olhar meu pequeno grupo de parentes – chip, gene, ciborgue, semente, feto, cérebro, bomba, ecossistema, espécie – isso é colaborativo. Devemos levar realmente a sério o fato de que ninguém faz nada sozinho, e nós fazemos nossas práticas performativas e de citação dessa maneira. Concebemos como reconhecer e como construir “nós” como método. Essa é a prática, incluindo manter nossas heranças – não deixando as pessoas esquecerem de que ainda temos que ler Weber, por exemplo. NG: Sim, o que você acaba de dizer me lembrou da vocação ou beruf de Weber. DH: Exatamente. Creio que ficamos impressionados demais com a euforia da mudança e prestamos pouca atenção ao que de fato nos pressiona e ao que devemos responder. NG: Finalmente, uma coisa sempre me intrigou: de que modo o “Manifesto” é de fato um “manifesto”? O texto sempre me pareceu muito aberto, fora das assertivas dogmáticas ou normativas que normalmente estão no cerne dos manifestos. De fato, você se descreve como “uma das leitoras do manifesto, não uma de suas escritoras” (2004: 325). Vinte e cinco anos depois da publicação do “Manifesto” como você pensa que ele se mantém como um “manifesto” no sentido político? DH: Um sentido direto é a brincadeira séria de fazer parte de uma linhagem, de tentar lidar com minha herança de ter lido Marx, ou o Manifesto Comunista mais estritamente. E também um pouco a tradição literal dos manifestos, que nos traz de volta à questão de Lenin: o que fazer? Quem somos, quando somos, onde estamos e o que fazer? Nesse sentido o “Manifesto Ciborgue” faz parte de uma tradição política, e eu tento lê-lo dessa forma. É um texto aberto por causa do que diz sobre o mundo, um mundo sem partidos de vanguarda. Não é mais “trabalhadores do mundo, uni-vos”- é isso também, junto com a tarefa nada óbvia de conceber quem são os trabalhadores do mundo. Essa é a questão pujante – pergunte a qualquer um que esteja tentando construir sindicatos trabalhistas efetivos hoje em dia. Para mim, porém, é mais “espécies companheiras do mundo, uni-vos”. Suponho que no “Manifesto Ciborgue” eu teria dito “ciborgues do mundo, uni-vos”. Mas agora estou tentando usar este termo não-sofisticado – espécies companheiras – que, para muita gente, significa a velha senhora desprezada por Deleuze e seu pequeno cão de estimação. Minhas amigas feministas e outras, nos anos 1980, acharam que o ciborgue era ruim. É uma simplificação, mas era a atitude que prevalecia entre minhas companheiras em relação à ciência e tecnologia. As posições eram muito polarizadas: de um lado, um ponto de vista insustentavelmente realista, quase positivista, da ciência que acredita que se pode dizer de fato o que se pensa não-tropicamente; de outro, um programa anticientífico de volta-para-a-natureza. O “Manifesto Ciborgue” era uma recusa a ambas as abordagens, mas sem uma recusa à aliança. .O “Manifesto” argumentava que você pode, e até mesmo deve apropriar-se desse lugar desprezado. O lugar desprezado era então o ciborgue, o que agora deixou de ser verdadeiro. De certo modo, o lugar desprezado agora é aquela velha senhora com seu cão, no capítulo de Deleuze e Guatarri sobre “Devir-Animal”. Recusei-me a ler Deleuze e Guatarri até o ano passado. sou uma leitora muito recente, e agora sei por que me recusava a lê-los. Todo mundo diz que sou deleuziana, e eu continuo dizendo “de jeito nenhum”. Essa é uma maneira de fazer com que pensadoras mulheres pareçam ser derivadas de pensadores homens, os quais são frequentemente seus contemporâneos – fazê-las parecer derivadas e idênticas, quando não somos nem uma coisa nem outra. Meu Deleuze é o feminismo transmutante de Rosi Braidotti, uma muvuca muito diferente (cf. Braidotti, 2006). NG: Percebi essa tendência em Latour. DH: Ele já foi repreendido por causa disso muitas vezes. Mas ele tem jeito, ele chega lá! Nas publicações, ele agora cita Stengers, Charis Thompson, Shirley Strum e até mesmo eu (cf. Latour, 1999). As práticas de citação não são simétricas, mas a troca aí é real. Porém, muitos ainda imaginam que o pensamento feminista vem do que eu chamaria de “equivalentes deleuzeanos”, que às vezes são nossos companheiros intelectuais, às vezes não, e às vezes simplesmente fazem outra coisa. Minha pequena rebelião foi, às vezes, me recusar a lê-los. Na vida cotidiana leio com muito mais cuidado aqueles que não possuem um nome público – ainda. Em parte, isso é a prática de trabalho não-opcional de uma professora. As práticas de leitura e citação têm que ser sincronizadas de alguma forma. Ler Maria, Astrid, Gillian, Eva, Adam, Jake, Heather, Natasha e muitos mais – isso traça minha linha de fuga melhor do que uma genealogia. São nomes de espécies companheiras, todas a perguntar: “o que fazer?” voltar ao topoBibliografiaBaudrillard, J. (1993) The Transparency of Evil. London: Verso. Disponível em português: Baudrillard, Jean. A Transparência do mal: ensaio sobre os fenômenos extremos, Campinas, Papirus, 1990. Bowker, G. and S.L. Star (1999) Sorting Things Out: Classification and Its Consequences. Cambridge, MA: MIT Press. Braidotti, R. (2006) Transpositions. London: Polity. Clynes, M. and N. Kline (1995) ‘Cyborgs and Space’, in C.H. Gray (ed.) The Cyborg Handbook. London: Routledge. Deleuze, G. and F. 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Belo Horizonte: Autêntica, 2009. 2ª edição. Haraway, D. (1991b) Simians, Cyborgs, and Women: The Reinvention of Nature. London: Free Association Books. (Dois capítulos desse livro estão disponíveis em português: “Gênero para um dicionário marxista: a política sexual de uma palavra”. cadernos pagu, 22, pp. 201-247, 2004; “Saberes localizados: a questão da ciência para o feminismo e o privilégio da perspectiva parcial”. cadernos pagu, 5, pp.7-41, 1995.) Haraway, D. (1997) Modest_Witness@Second_Millennium.FemaleMan©_Meets_ OncoMouseTM. London and New York: Routledge. Haraway, D. (2003) The Companion Species Manifesto. Chicago: Prickly Paradigm Press. Haraway, D. (2004) The Haraway Reader. London and New York: Routledge. Haraway, D. and J. Schneider (2005) ‘Conversations with Donna Haraway’, in J. Schneider, Donna Haraway: Live Theory. London and New York: Continuum. Hayward, E.S. 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Donna Haraway é professora do Departamento de História da Consciência na Universidade da Califórnia em Santa Cruz, onde ela ensina teoria feminista, estudos de ciência e estudos de animais. Seu livro mais recente é When Species Meet (University of Minnesota Press, 2007), que examina aspectos filosóficos, históricos, culturais, pessoais, tecnocientíficos e biológicos das ações inter e intra animais e humanos. Gane & Haraway – Interview with Donna Haraway 157 Downloaded from http://tcs.sagepub.com by on August 29, 2009 [1] Agradecimentos ao Prof. Dr. Júlio Simões, do Departamento de Antropologia da USP e a Rolinka Nuse, que contribuíram para o processo de revisão. [2] Todas as citações do Manifesto Ciborgue foram extraídas da versão em português. Haraway, D. “Manifesto Ciborgue: Ciência, Tecnologia e feminismo-socialista no final do século XX. In Tadeu, T. (org). Antropologia do Ciborgue – as vertigens do pós-humano. Belo Horizonte: Autêntica, 2009. 2ª edição. [3] Ver o filósofo e urbanista francês Paul Virilio. O termo refere-se a questão de uma velocidade que rompe distâncias e territorialidades em um tempo cada vez menor, por meio da informática. |
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